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25 de maio de 2009 —

Viajeros – De Cochabamba à cidade mais alta do mundo

Bolívia, mais de quatro mil metros de altitude. Ladeiras margeadas por casas de séculos passados, lembrança de Ouro Preto. Potosí foi a maior fonte de prata da metrópole espanhola, testemunhou o esbanjamento de uma elite parasita e a cruel exploração dos indígenas. Hoje vive do turismo, e claro, de suas minas.

Já estamos há mais de um mês neste país que tem o dom de mudar o olhar de todos que o visitam (ao menos, dos que se entregam). Chegamos do Chile para o tal fórum do qual tanto queríamos participar, nas imediações de Cochabamba. Vivemos cerca de trinta dias nesta cidade, pela primeira vez verdadeiramente artesanos.

Nosso dinheiro acabou. Estamos sem cartão para saque. Mas descobrimos que sim, podemos nos sustentar com artesanato e malabares. Temos que nos privar de pequenos luxos, mas nada que faça muita falta.

Ontem foi meu aniversário. Jantamos num moquifo à la boliviana – ovo frito, arroz, batata e salada por três bolivianos e cinquenta, cerca de um real. Não tínhamos grana para uma grande comemoração, mas afinal, para quê? Quer coisa mais única que estar em Potosí, na entrada de um show de rock, vendendo artesanato na fila?

Uma nova e estranha família

No nosso segundo dia em Cochabamba, Thiago viu um artesão com cara de brasileiro; Charlie olhou para Thiago e pensou que fosse colombiano. Se identificaram um no outro. Charlie é uma figura; tem trinte e três anos, uns bons quilos, cabelo encaracolado comprido e meigos olhos esverdeados. Ele nos avisou de um alojamento mais barato que aquele onde estávamos, limpinho e com direito a banho pela manhã (aqui na Bolívia, pela escassez de água nas áreas altas e secas, não é em todo lugar que a diária inclui banho). Acordávamos com ele cantando “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos, num português truncado, e fazendo umas coisas esquisitas que ele dizia ser capoeira.

Já no caminho para o Alojamiento Roma encontramos um alemão magro, alto, com olhar de psicopata. Ele toca um instrumento que parece uma fera rugindo, sente a energia dos cristais e vende pulseiras da sorte. “Faça um desejo do fundo do coração, e que não prejudicará a ninguém”, diz ele ao fazer o nó. Quando perguntam quanto custa, ele responde: “um desejo não tem preço, dê a contribuição que achar justa”. E ele realmente se concentra quando está fazendo suas singelas pulseirinhas, para distribuir boa energia pelo mundo.

Deixamos nossas coisas no alojamento e fomos trabalhar junto com Charlie e Oscar, seu amigo também colombiano, em frente à universidade. Oscar é grandão, negro – apesar da aparência robusta, é inocente como uma criança. Já no primeiro dia foi só eu comentar que estava com fome que ele comprou um lanche para mim. Outro dia perguntou por que eu não usava brincos, falei que minha orelha inflama. Ele me deu uns brincos de coco que tinha para vender, que não infeccionam. Perguntei a quanto ele vendia. “Não, por favor, é um presente”, respondeu.

Depois conheci Martin, o uruguaio de 20 anos que já está há seis na estrada, e a brasileira Alice, sua namorada, estudante de geografia que cogita não voltar para as salas de aula. Os dois estavam vivendo no Rio na mesma época, mais ou menos um ano antes. Tinham os mesmos amigos, mas foram se conhecer só na Bolívia. Ele com seus dreads desgrenhados, cara magra e língua afiada, disfarçando uma doçura latente. E ela tranqüila, seguindo as ondas da vida. Martin faz arte com alicate e arame, e ridicularizava Charlie, que revende bugigangas compradas em camelôs. O colombiano não ligava, retrucava com humor.

À noite o movimento na universidade é fraco, então os vendedores vão para a praça central. É o ponto de confluência da cidade: num canto fica o pessoal da igreja, o pastor clamando contra satanás e as ovelhinhas aplaudindo; do outro lado ficam os comediantes rodeados por uma pequena multidão, a atração mais disputada da praça; entre os dois eventos alguns homens discutem política. Um dia me enfiei no meio da homarada e ouvi um pouco. Estava interessante, discutiam o que é cultura.

Por toda a praça há trabalhadores informais vendendo artesanato, pipoca, sorvete, café, cuñapé (pão de queijo boliviano) e tudo mais que alguém resolver oferecer. Jimi, um boliviano que viajou cinco anos pelo Brasil, também passava a noite estendendo seu pano na praça. Ele foi pego pela imigração em Joinville, passou um mês na cadeia – segundo ele, foi bem legal; a galera era gente boa e tinha uns assaltantes de banco que pediam as melhores comidas pelo celular – e depois foi deportado para a Bolívia. Em São Paulo, numa madrugada na Praça da República, ele me disse que viu uma nave espacial pousando. Todo mundo (uma galera bebendo madrugada adentro) já estava dormindo e ele ficou paralisado – os ETs fazem o tempo parar para que ninguém possa vê-los. Uma porta se abriu e contra a luz, de canto de olho, ele viu três extraterrestres: o pai, o filho e o espírito santo. “Como na Bíblia, menina, eles vieram para ver sua criação. Eles criaram a Terra, e outros devem ter criado o planeta deles, e sei lá no que isso vai dar”, me contou com seu português de mano paulista. Mas o que ele queria mesmo era conhecer uma gringa que o levasse para a Europa. “Esse alemão é louco, sai da Europa para vender pulseirinhas na Bolívia. Se fosse eu, ficava lá e fazia uma grana”, falava ele rindo. Mais tarde encontraríamos Jimi novamente, em Copacabana. Ele estava com uma gringa.

A vila do Chaves

O Alojamiento Roma é separado apenas por um muro do Alojamiento Cochabamba – antigamente eram um só. No Roma estávamos, além de Thiago e eu, o Alemão, Jimi, Oscar e Charlie. Depois chegaram Jeronimo, metade inglês e metade espanhol, um norueguês, a holandesa Mathilde, quatro malabaristas chilenos, um paraense e sua namorada portuguesa, que tinha que mostrar o passaporte para provar que não era brasileira.

Do outro lado do muro estavam Martin e Alice, e chegaram dois casais de artesãos que viajam com filhos pequenos. Parecia a vila do Chaves, ou Chavo del Ocho, nome original da clássica série mexicana. Ao acordar, todo mundo tomava banho e ficava conversando no estreito espaço entre os quartos e o muro. À noite todos se juntavam em frente à porta do nosso quarto, onde estavam as cadeiras e a mesinha, e ficávamos conversando até que, um por um ou em grupos, todos iam para seus quartos ou para algum barzinho. E claro, sempre naquele esquema: se alguém tem comida, divide com todos, e assim com água, bebida, enfim, tudo.

Ninguém conseguia ir embora. Mas, no final das contas, o rio segue. Jeronimo e Mathilde, que acabaram ficando juntos, estavam indo para o Salar Uyuni, passando por Oruro. Eu e Thiago aproveitamos para seguir viagem.


Charlie posando com suas artesanias, atrás Oscar iniciando uma venda. Praça central de Cochabamba, outubro de 2006. Foto de Mathilde Bokhorst.
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Texto escrito em 2006, parte do livro Viajeros.

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