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24 de agosto de 2009 —

Viajeros – Entre passeatas e cachoeiras

Uma família em cima da cascatinha, seguindo o curso do rio. Guarda-chuvas para se proteger do sol. Eu de frente à cascata, sentada numa pedra, com os pés na água. Chuá, chuá, chuá.

Acabamos de almoçar. Thiago está se preparando para ir trabalhar. Eu fico aqui cuidando das coisas, barracas e mochila. Virei ama-de-casa por uns dias.

Estamos acampados em Coimata já faz uma semana, a vinte minutos de Tarija – capital do departamento que também se chama Tarija, fronteira com a Argentina. Sob este solo se encontra a maior riqueza da Bolívia: o gás natural. Tem gente aqui com muita grana, e essa história de nacionalização não lhes vem muito a calhar.

Autonomia

O país está em turbulência. Uma nova constituição nacional será elaborada. Em alguns departamentos, os mais ricos, um movimento contrário à política presidencial está tomando as ruas com passeatas e promovendo greves de fome. Eles querem autonomia departamental na exploração dos recursos e que a constituição seja aprovada com dois terços do congresso, e não com maioria simples. Integrantes do movimento afirmam que como Evo Morales já tem maioria no congresso poderá aprovar o que quiser, inclusive o controle federal das reservas de gás natural e a reforma agrária, mudanças que consideram muito radicais.

Ao meu ver, esse movimento está mais para a autonomia dos bolsos endinheirados que fazem das ruas de Tarija uma passarela, onde se desfilam as novas e caras tendências da moda e carros importados. Isso no país mais pobre da pobre América do Sul. E a massa segue a elite, enchendo as ruas. Autonomia – parece bonito, não?

Barraca, cachoeira, fogueira e violão

Chegamos aqui para passar o dia, dormiríamos na casa de um casal de artesãos. Coimata é um lugar com várias cachoeiras, nos arredores de Tarija. Trouxemos sacos de dormir, uma panela, casacos e um pouco de comida. No final das contas o casal não veio: dormimos ao relento, baixo às estrelas, aquecidos pelo fogo. Acordamos com o sol nos fritando e fomos direto para a fossa, onde a cachoeira deságua.

Nossa cozinha em Coimata.

Nossa cozinha em Coimata.

No hotel, de volta a Tarija, uma senhora me chamou: “venha ver, minha filha, estou vendendo umas coisas, entra, entra”. O que uma velhinha poderia ter que me interessasse? Mais por educação, fui ao seu quarto ver o que ela queria me mostrar.

Não sei como a velhinha tinha tanto trambolho no hotel. Soldado, nosso amigo malabarista e companheiro em Tarija e Coimata, comprou uma mochila por quarenta bolivianos, equivalente a uns dez reais. Eu me interessei por uma barraca, muito melhor que a minúscula quebra-galho que tínhamos, e um tripé, ambos novinhos. Noventa bolivianos os dois, menos de vinte e cinco reais.

A barraca velha, demos para Soldado. “Pronto, vamos viver em Coimata, temos tudo o que precisamos e ainda economizamos a grana do hotel”, disse ele. Soldado é de Jujuy, província ao norte da Argentina. Louco, comprovando minha tese sobre os argentinos. Ele tinha acabado de trabalhar numa festa e estava com o pagamento no bolso. Sua namorada o esperava em outra cidade, era o casamento de alguém da sua família. E ele esperava o ônibus, de noite, cansado. Até que passou um com destino a Tarija. “Seria tão bom passar a noite dormindo nesse ônibus quentinho e entrar na Bolívia”, pensou. E foi o que ele fez, sem avisar ninguém.

Soldado faz mágica com os malabares (tirei umas fotos dele fazendo seus números com enormes pomelos, espécie de laranja gigante, mas ele pediu os negativos encarecidamente), e nunca para de falar e fazer palhaçadas. Ele e Thiago iam à cidade trabalhar alguns dias e eu ficava sozinha, me nutrindo do silêncio. Quando eles voltavam, festa – com Soldado não podia ser diferente. Ele foi embora ontem, de volta à sua terra.

Depois de tanto tempo presos em cidades, viver em plena natureza está sendo muito bom, revitalizando as energias. Sombra, fogueira e água fresca; precisa de mais?

Soldado e eu  - com tratamento psicodélico que dei para tentar salvar a foto de Thiago cujo negativo ferrou-se no caminho.

Soldado e eu - com tratamento psicodélico que dei para tentar salvar a foto de Thiago cujo negativo ferrou-se no caminho.

Texto escrito em 2006, parte do livro Viajeros.

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