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1 de outubro de 2009 —

A Carta

Decidi, vou morrer, já fiz de tudo, já casei, tive filhos, um só, lindo, peguei já que tem jeito pra escrever, vi no jeito em que pega no lápis, e murmura enquanto rabisca, inventando historias. Já escrevi livros, sete livros, bem que fizeram sucesso, não me reconhecem na rua porque ninguém conhece a cara de escritores, se eu fosse ator, bem que daria autógrafos, até já dei, esses dias mesmo fui em um congresso, uma garota pediu um autografo para a mãe, dei um autografo e um livro, o meu primeiro, o melhor, fala de um garoto cego e uma garota que nasceu com as duas narinas tapadas, se apaixonam, e ela morre asfixiada num beijo, o único beijo, o primeiro. Ta decidido, vou morrer.

É verdade, não é morrer no auge, só o meu primeiro livro vendeu, os outros não eram ruins, minha ex-mulher gostava, não escrevo mais, parei, bem que eu tento, mas não sai, sequei. Talvez entre para uma aula de piano e aprenda a compor, piano é caro, vou aprender a tocar violão, isso, começo com o violão, violão eu já tenho, e música da dinheiro, ainda mais se eu fizer musica boa, fazer samba, samba igual Noel, minha mulher não gostava de samba, nunca colocou um disco meu, se estivesse tocando, ouvia, aliás, nunca colocou disco algum, acho que não gostava de música, um dia eu faço um samba pra ela, escrevia poemas pra ela, bons poemas, hoje não escrevo mais nada, não sei mais escrever, perdi a mão, então morro, ainda hoje.

É o aniversario da minha ex-mulher, completa trinta e dois. Eu dava sempre flores e um poema, sempre, e levava-lhe o café na cama, ela era linda acordando, levava café a ela todos os dias só para vê-la acordar. Um dia cheguei e ela não estava, deixou uma carta dizendo – Minha mãe ligou queixando-se do peito, volto amanhã. Liguei no dia seguinte, perguntei do José, meu filho, disse que estava bem, que a mãe estava melhorando, perguntei dela, disse que estava bem e não perguntou de mim, quando voltava pra casa, respondeu que não sabia, liguei no outro dia, perguntei tudo, a mãe melhorava, perguntei quando voltava, não disse nada. A mãe morreu um mês depois, e ela voltou sem o filho, pegou uns vestidos, um álbum de fotos e foi, disse tanto pra pegar tudo e ir, eu não ouvi nada, foi de carona com um rapaz, deixou as chaves na porta, “suas chaves”, gritei, não voltou.

Então morro, deixo uma carta e aí morro, e ela morre de culpa, vou dizer tudo, sem histeria, vou escrever sobre o amor que ela tinha por mim, não vi acabar, eu ainda escrevia poemas pra ela quando a mãe dela morreu, não escrevo mais e a culpa é dela, morro culpando-a, é, “a culpa é sua!”,terminará assim a carta, é um bom final, sim, esta carta será minha melhor obra, antes mostro a um amigo da editora, ele vai gostar, capaz que queira lançar num livro de contos, um ultimo livro, nunca lancei um livro de contos, e livro de contos vende, vai vender que nem água. Aí minha mulher volta pra casa, e faço músicas pra ela, amanhã mesmo compro um piano, amanhã, aí eu morro.

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