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12 de abril de 2010 —

Das três transformações

Filho de pastor, criado para ser pastor, ele negou toda sua herança moral. Em meados do século XIX, Nietzsche abriu mão do comodismo e foi o mais fundo que conseguiu na busca da compreensão humana.

nietzsche

Assim Falou Zaratustra é o primeiro livro que leio deste filósofo. Ainda estou na metade de suas páginas, mas suas reflexões têm me tocado intensamente. A obra trata dos ensinamentos deste personagem, que após anos e anos lapidando sua conscência e seus sentidos em companhia da natureza, percebe que sua sabedoria não pode se saciar sozinha. Seu cálice deveria esvaziar-se para novamente poder ser preenchido.

No trecho abaixo, Zaratustra fala ao povo de um vilarejo chamado Vaca Malhada. Ouso insinuar que poderá ser melhor compreendido por aqueles que se dedicam de coração a pensar e praticar conscientemente a evolução humana. Ou, espero, possa despertar fagulhas nos corações embrutecidos.

Das três transformações

“Três transformações do espiríto vos menciono: como o espírito se converte em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.

Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e de carga, respeitoso. A força desse espírito clama por coisas pesadas.

O que há de mais pesado? – pergunta o espírito de carga. E ajoelha-se feito camelo e quer que o carreguem bem. Que há de mais pesado, heróis? – pergunta o espírito de carga – para que eu o deite sobre mim, e a minha força se recreie?

Não será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer? Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sabedoria?

Ou será separarmo-nos da nossa causa quando ela festeja a sua vitória? Escalar altos montes para tentar o que nos tenta?

Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e sofrer fome na alma por causa da verdade?

Ou será estarmos enfermos e despedir a consoladores e travar amizade com surdos, que nunca ouvem o que queremos?

Ou será nos afundar em água suja quando é a água da verdade, e não afastar de nós as frias rãs e os quentes sapos?

Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma quando nos quer assustar?

O espírito de carga sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto.

No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.

Procura então o seu último senhor, quer ser seu senhor, quer ser seu inimigo e de seu último deus; quer lutar pela vitória com o grande dragão.

Qual é o dragão a que o espírito já não que chamar Deus, nem senhor?

‘Tu deves’, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: ‘Eu quero’.

O ‘tu deves’ está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: ‘Tu deves!’

Valores milenários cintilam nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim:

‘Todos os valores das coisas brilham em mim.

Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o eu quero!’ Assim falou o dragão.

Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não será suficiente a besta de carga, que abdica e venera?

Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode; mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode o poder do leão.

Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.

Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito de carga e respeitoso. Para ele isto é uma verdadeira rapina e próprio de um animal rapace.

Como o mais santo amou em seu tempo o ‘tu deves’, e agora tem de ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa de seu amor. É preciso um leão para esse feito…

Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se converta em criança?

A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento, uma santa afirmação.

Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é necessário uma santa afirmação; o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo.

Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se converteu em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.”

Assim falou Zaratustra.

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