O que é cultura? Essa pergunta sempre surge quando queremos organizar as percepções culturais em nossos arquivos cerebrais. Mas talvez o inconsciente saiba a resposta para esta pergunta, ou ainda, nem se preocupe com ela. Ele simplesmente sente, vive, assimila ou não, faz associações com nossas experiências anteriores, nossa carga emocional, de uma maneira que vai além de nossas concepções racionais. Mas somos viciados nas palavras, nos conceitos. E através deles nos comunicamos. Por isso, me propus a transmitir minhas recentes sensações culturais, manchadas pela razão em palavras, por mais limitadas que estas sejam.
O Brasil paradoxal
Brasil. Estradas pavimentadas e sistema elétrico. Gente falando alto, sorrindo, mulheres que olham nos olhos e não levam desaforo. Shoppings, executivos, tecnologia, moda pautada pelas tendências mundiais. Barracos, miséria, alienação. Amazônia, cerrado, praia, frio penetrante e calor infernal. Seca e inundação. Contaminação e desperdício. Feijão, arroz, farinha e suco de caju. Negros, mulatos, brancos, loiros, cafusos, altos, baixos, gordos e magros. Africanos, indígenas, europeus e asiáticos em constante miscigenação. A maior concentração de figuras dementes e curiosas por metro quadrado, profetas do apocalipse. Bruno e Marrone, Calypso, Chico Buarque e Zeca Baleiro. Catolicismo, umbanda, candomblé, judaísmo e as milhares de igrejas evangélicas se espalhando como praga. Sonhos de poder, miragens de consumo. Preconceito difundido e mascarado. Biodiversidade e desmatamento. A maior concentração de terra e renda do mundo. O eterno país do futuro que nunca chega. O eterno país da palpável desigualdade.
Os distantes Andes
É mais fácil e mais difícil falar do que ficou para trás. O passado é mastigado pelos conceitos, as impressões de tempos idos surgem em pequenos detalhes e certas minúcias passam batidas, só fica o que marcou.
A sensação de ser olhada como um ET na Bolívia, o forte cheiro de carne que exala das pessoas nos ônibus fechados, os enormes mercados e a ausência de supermercados, as mamitas de saias e tranças fazendo artesanato, as adolescentes tímidas que olham para o chão e falam baixo. Os milhares de bêbados em estado deplorável, de causar repulsa e dor, as senhoras que só falam quéchua, as receptivas e curiosas crianças, o nacionalismo confundido com vingança, o orgulho da cultura nativa e a vontade de comparti-la. A ligação com a terra, com a Pachamama. Os poderes medicinais e místicos da folha de coca. Os cenários surreais. O duro trabalho de cada dia, marcado na pele e no olhar.
O Peru do orgulho da raça, do sentimento de unidade, do nacionalismo instintivo. O ódio ao Chile, aos espanhóis culpados pelos horrores da colonização e a reverência a tão culpada, porém incompreensivelmente inocentada igreja católica. A venda das tradições, o turismo parasita, a Machu Picchu dos europeus. A criativa e deliciosa culinária peruana, a música andina, a diversidade de clima, relevo e vegetação. Milionários e miseráveis. Grandes metrópoles com tudo que a modernidade oferece, pequenas cidades abandonadas pelo tempo. A cultura incaica, vendida e se perdendo em notas de dólares.
As montanhas andinas são repletas de mistérios, exalam vida e contos do passado. A rocha fala ao espírito e o vento o carrega para lugares inexplorados. O sol queima mais, diferente. A pele estranha. O pulmão avidamente procura no ar o oxigênio. E os camponeses trabalham. E trabalham. E tomam chicha, dançam em suas festas onde o sincretismo religioso confunde e fascina. Fazem oferendas à Pachamama para que ela seja generosa. Rezam aos céus para que sejam piedosos.
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A vida encerra infindáveis mistérios – cada cheiro, cada cor, cada sensação física ou abstrata. E o andarilho espera ansiosamente por cada densa gota de vida, preparando-se para absorver o máximo, a essência do eterno. Todo passo é o novo. Todo olhar traz o inesperado.
A viagem nunca acaba.
Texto escrito em 2007, parte do livro Viajeros.