A privatização que o curitibano gosta, ou que não percebe, ou que não quer ver, está acontecendo de baixo de nossos narizes e ninguém está reclamando.
O despertar desta crítica surgiu num momento em que estava muito satisfeito com uma ação bastante importante para a cidade: a Virada Cultural de Curitiba, que aconteceu neste final de semana. Realmente devo tirar o chapéu, pois a Fundação Cultura de Curitiba atendeu uma reivindicação antiga de alguns movimentos culturais da cidade, que era transformar o espaço público curitibano, ocupando as ruas e praças para que a arte viesse a transformar a tímida Curitiba, conforme descreveu muito bem a amiga Ana Caldas. Foi isso que aconteceu, por isso, minha crítica vai além da forma e do conteúdo da Virada. Vai para gestão das políticas públicas municipais. Mais especificamente, vai no tocante a elementos profundos a forma de governar do grupo político que aí está há 20 anos. A ideologia de que o privado é melhor e mais eficiente que o público.
Refiro-me a forma com que a virada foi patrocinada e, também, ao que está acontecendo a outros espaços culturais e de convivência de nossa cidade. Eles estão sendo privatizados silenciosamente. A aprovação recorde do ex-prefeito e governador eleito do Paraná, Beto Richa, demonstra que o curitibano está gostando dessa política, não a percebeu ou não está querendo ver que toda a cidade está sendo privatizada. Tudo é negócio na Curitiba S.A.
Por exemplo, nosso querido Jardim Botânico tem dono, a grupo o Boticário. A quem diga que a clássica estufa já não exala mais o perfume das flores tropicais que ali estão, mas a fragrância do lançamento para este verão. O relógio das flores no largo da ordem? É propriedade da Global Village Telecom e agora falam que ele dá o horário de Nova York e não mais de Curitiba. E a Virada Cultural? É do HSBC, que serve champagne aos apreciadores da boa música da sinfônica paranaense tocando, na ocasião, em parceria com o Hermeto Pascoal, o gênio paraibano da música popular brasileira (que ironia).
Sou produtor cultural também, e sei o quanto é importante captar recursos no setor privado para viabilizar esse tipo de evento. Também reconheço o cuidado que a prefeitura de Curitiba e a FCC têm ao abrir licitação pública para escolha dos concessionários, dando um pouco mais de transparência nesses processos. A esta passagem, devo somente ressaltar o caso especial do HSBC, que veio a partir da troca de título fiscal da lei de incentivo, a pior forma de se privatizar o recurso público, mas que também não é um problema específico da cidade de Curitiba, mas do sistema de financiamento da cultura brasileira (que se tudo der certo, mudará com o Sistema Nacional de Cultura). A minha questão fundamental está em refletir se esse realmente é o caminho que percebemos como melhor.
É a privatização um caminho desejável? Pois não me venham dizer que é outra coisa, pois isso se trata sim de privatização. Mesmo acreditando que poder público e empresas possam trabalhar juntos em “boas parcerias” e a privatização em certa medida seja “eficiente”, por outro, acredito que possam haver graus diferenciados de privatização, ou mesmo, modelos de concessão que limitem a possibilidade de tudo se tornar mercadoria.
A mim me preocupa muito a exploração visual que O Boticário faz espalhando milhares de totens por dentro do parque. A mim me preocupa muitíssimo quando o HSBC fecha uma parte da área construída da praça Espanha, e só permite a entrada de clientes HSBC para beber do seu champagne. Haveriam outras formas de tornar interessante a estes “parceiros” o incentivo a cultura e a manutenção dos espaços públicos da cidade, sem que estes se apoderem do público? Essa é uma pergunta importante, se não, necessária de se fazer. Enquanto isso, eu fico com a pulga atrás da orelha querendo compartilhar essas palavras pra ver se compartilhamos da mesma angústia.
Essa coisa de tratar tudo como mercadoria me incomoda, ôh se me incomoda.